“Disciplinas e demais atividades acadêmicas programadas nesse dia precisam ser freqüentadas, sob pena de reprovação?”
Tramita no Congresso Nacional o projeto de Lei nº 261/04, de autoria da senadora Ana Júlia Carepa (PT-PA), segundo o qual serão proibidos vestibulares e concursos públicos aos sábados, com base no direito à liberdade religiosa. A nosso ver, trata-se, ao contrário, de uma ingerência indevida em instituições políticas de um Estado que, a rigor, é laico e não pode se conformar a particularismos religiosos.
Evidentemente, a sociedade civil é o espaço em que muitas visões de mundo disputam a condição de direção moral, intelectual e política. Toda e qualquer concepção religiosa, inclusive, é exemplo disso. Desde Maquiavel, Thomas Hobbes e a Revolução Francesa, afirma-se a separação do Estado em relação à religião. Ainda que em contextos distintos, esses autores e tantos processos políticos reafirmaram a ordem política como o resultado das práticas e lutas históricas, não sendo, portanto, a implantação do “além” no aquém. As universidades federais são instituições estatais (tanto, que os reitores são “agentes de Estado”), e que, constitucionalmente, têm assegurada uma autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.
Entretanto, avancemos na análise do que poderia se dar a partir do atendimento à solicitação que, no caso presente, vem, basicamente, da Igreja Adventista do Sétimo Dia e da comunidade israelita. A propósito, sabem esses cidadãos, que o sábado é dia letivo na Universidade? E que, portanto, disciplinas e demais atividades acadêmicas programadas nesse dia precisam ser freqüentadas, sob pena de reprovação?
E se as provas para os vestibulares e concursos públicos forem “apenas” de segunda-feira a sexta-feira, os adventistas e israelitas ou seus representantes políticos arcarão com o ônus de eventuais demissões ou corte de pontos nos salários de trabalhadores que faltarem ao trabalho para a realização delas?
Outros cenários decorrem da mesma idéia. Muçulmanos que, residindo a certa distância da cidade em que as provas serão aplicadas, poderiam pedir para iniciá-las com algum atraso, pois teriam que interromper a viagem, a fim de ser observada a oração diária que fazem voltados para sua cidade santa. Testemunhas de Jeová estariam no direito de ver retirada dos conteúdos programáticos toda e qualquer referência às transfusões de sangue. Católicos se sentiriam à vontade para fazer o mesmo em relação a certas abordagens acerca do aborto e do controle de natalidade ou à realização dessas provas aos domingos, dia em que, supostamente, deveriam guardar em nome de sua fé. A suinocultura deveria ser banida dos cursos de veterinária, uma vez que existem concepções religiosas contrárias à ingestão desse produto. Uma religião que, por exemplo, pregue o lazer como valor central da existência, poderá entrar com um pedido para que essas provas nunca ocorram em horários de jogos de futebol ou de sessões nas salas de cinema.
Por tudo isso, é inaceitável a tentativa de ingerência, representada hoje por esse projeto de lei e seus defensores, na autonomia de instituições do Estado que precisam continuar laicas, teórica e praticamente falando. Aprovar tal projeto representa um retrocesso.
Prof. Edilson José Graciolli
Pós-doutorando em Sociologia – UFU
Uberlândia (MG)